segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Vinte e Oito do Um do Onze

Há algum tempo que não me sentava entre estas pessoas. Avisaram-me logo: se me perguntassem, o meu casaco de vison estava a limpar. Sim, porque estranhariam no meio de tanta pele, um simples casaco preto e uns sapatos despreocupados. A burguesia lisboeta concentra os seus cabelos arranjados na sala que se prepara para ouvir Schubert, às mãos de uma maestrina. Não passam, portanto, despercebidas as rastas de um jovem que se sentou na plateia. Mas agora é hora do silêncio e de atenção para o palco.
É sempre curioso ver uma mulher a tomar o papel geralmente conduzido por um homem. O seu cabelo longo e brilhante dança com os seus passos largos e pequenos pulos enquanto coordena a orquestra. O entusiasmo transmite-se e o espectáculo não é apenas auditivo. Aquela elegância nas ordens ao grupo grande impõe respeito e admiração.
Saio satisfeita. Valeu bem a pena regressar ao clássico desta forma.

Vinte e Sete do Um do Onze

Mais uma noite fora e o prazer da companhia. O desafio tinha sido lançado há algum tempo e hoje decidimos aceitá-lo. O bar está cheio e formam-se as equipas de sempre, que esta procissão à quinta-feira já é frequentada por muitos repetentes. Chega a hora e surgem finalmente as primeiras perguntas. Bastou a primeira, para a a qual sabia bem a resposta, para me lançar no entusiasmo do jogo. Há perguntas que sei que, por mais que tente, não saberei responder, outras que são de caras, outras que deveria saber, mas que o cérebro se recusa a recordar e há aquelas que sabemos que, apesar de não ser imediata, poderemos chegar à resposta certa. É então que se fecham os olhos, se abstrai de tudo o resto e se concentra na pergunta. Eu sei isto. Eu tenho de me lembrar da resposta. Tapo os olhos para me concentrar melhor e não me movo. Concentro-me porque eu vou conseguir. Até que alguém me pergunta se está tudo bem. O meu método de concentração gera preocupação. Afinal, é só um jogo.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Vinte e Seis do Um do Onze

Era isto que me estava a faltar. Este chocolate quente a aquecer-me as mãos, sentada junto ao Camões, no centro de Lisboa, com o à vontade e a liberdade de que preciso. Não chove e o frio acorda-me. Matam-se saudades de uma amizade que importa e criam-se novos contactos. Precisava de uma noite destas. Esta é a Lisboa que me faz falta.

Abraçaram-se, meses depois do último encontro. Vejo-lhe o sorriso por que tanto lutei ao longo do dia. Mas aquele abraço trouxe-o, por fim. E vejo-o tão claramente surgir nos cantos dos seus lábios, aquela paz e segurança que tanto precisava neste dia longo. Não sou quem lhe deu o abraço, mas sou quem o sei reconhecer.

Vinte e Cinco do Um do Onze

Hoje já não quis voltar. São dias, parece-me. Hoje não quis regressar ao hospital de sempre nem cruzar-me com as caras do costume, hoje cansaram-me as memórias.
Assim como há quem corra o Louvre em filmes de culto para bater recordes de tempo, nós tentamos a mesma façanha, mas na urgência do hospital. Após a triagem, temos apenas cinco minutos para percorrer os longos corredores que separam a urgência geral da urgência da especialidade a que precisamos de chegar, em pólos opostos do edifício. Os seguranças carregam o sobrolho, mas é preciso acelerar o passo. Corre! Uma atrasa-se com um telefonema, a outra apressa-te até ao elevador, reencontrando-se ambas esbaforidas do quinto piso, mesmo a tempo. Já nos esperam, que os doutores também querem ir descansar e em menos de cinco minutos estamos despachadas. Porém, é preciso passar ainda pela secretaria de saída da Urgência. Coisa pouca, com certeza, é só preciso uma senha, não deverá ser difícil quebrar o recorde. Pura ilusão. Pois foi o tempo que mais custou a passar aquele em que se aguardou a resolução da papelada da fila demasiado longa. E é ali naquele cantinho, naquele pequeno espaço à saída da urgência, que a tosse dos muitos presentes mete mais medo que a doença que nos trouxe até ali.

Vinte e Quatro do Um do Onze

Ela já sabia o que poderia ter. São muitos suores e não consegue dormir há três dias e ela foi ver à internet. Fez até uma lista que trouxe para ler ao senhor doutor. Ora veja, insónia, sudorese, palpitações - ai o meu peito! -, olhos salientes - e abre muito os olhos para podermos confirmar - é tiróide! Mais do que todos os sintomas que descreve, o que maior evidência tem para nós é a energia e a conversa inesgotável. Relembra a menopausa, mas que não se assemelha ao que sente agora, e ainda ontem falou ao telefone com o meu filho, de quem tem tantas saudades, como nos diz no pequeno instante em que, repentinamente, se esconde atrás da mão para chorar meia lágrima, pois não há tempo a perder, a conversa ainda agora começou. Mede-se a pressão arterial e ali fica, com um braço despido e o peito descoberto, que refere orgulhosamente andar sem apoio, que é assim que agora sabe bem, enquanto mantém a verborreia incansável.
É preciso terminar a consulta e o médico levanta-se para dar o mote da despedida. Não importa. Sentada, ignora o gesto e mantém as queixas, as suas suspeitas, os seus queixumes e os seus elogios grandiosos ao médico, de que tanto gosta. Reafirma-se a despedida, desta vez verbalmente. Está na hora. Levanta-se por fim e prepara tudo para sair. Boa tarde, então, proteja-se do frio. Oh doutor! É por isso que trago esta camisola, é muito quente, por aqui não entra frio nenhum, é de.. ai.. como se chama.. caxemira, não é?

Vinte e Três do Um do Onze

É bom regressar aos bons tempos. Volto à escola onde aprendi a ler para, agora já maior, exercer o direito de voto. Desta vez não voltei à sala onde concorria com os meus colegas para ver quem terminava primeiro os testes, mas, de qualquer forma, é um sentimento muito reconfortante rever aquelas portas, aqueles corredores, as janelas e os quadros.
E, para completar o reconforto, encontro uma das professoras mais queridas da minha adolescência. Sorri com a mesma alegria que sinto em mim pelo reencontro e trocamos algumas palavras. Pergunta-me pelo curso, como tem de ser, mas pergunta mais. Como vai a escrita? Pergunta por mim, por quem sou, por quem tento ser. E eu agradeço a lembrança, agradeço o incentivo pelas palavras e a amizade que se mantém e se manterá. É bom ser recordada. É bom manter a casa de portas abertas.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Vinte e Dois do Um do Onze

Perco-me. Há tanto para ver, tanta coisa inútil e irrelevante com que o olhar se entretém e perde tempo, de tal forma que o tempo não se sente. Até que uma chamada de atenção fora desta irrealidade recupera a atenção, a consciência e a culpa pelo desperdício.
Esqueci-me e eu nunca me esqueço. Corri para o encontro, pedi imensas desculpas, mas não chega. Cá estou de novo. Repito a entrega à tentação, vezes e vezes seguidas, e não tardará até repetir o esquecimento. Há mais vida fora disto. A vida é fora disto. E algo me faz adormecer constantemente neste torpor.
E agora chega de lamentos. Do it yourself.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Vinte e Um do Um do Onze

Do lado de cá, o médico pai, no seu trabalho, recebe o telefonema de lá, da médica mãe, em casa com a criança. "Diz, fofinha." E a médica mãe lá conta que a criança acordou com umas manchas no corpo. Mas estes pais são diferentes, são médicos, e a linguagem, apesar do carinho humano de sempre, tem algumas particularidades. Pergunta-se inicialmente pela febre, pelo mal estar, até que se entra no outro universo de preocupações. "Mas tem alterações hematológicas?". E, para que não restem dúvidas, o médico pai pede para esclarecer melhor. "São máculas ou pápulas?" Porque o amor é humano, mas a bata não sai com facilidade do corpo.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Vinte do Um do Onze

Há algo que tem de falar com o senhor doutor. O médico de antes já sabia e disse que ia ajudar, mas reformou-se e adoeceu e agora tem de falar disso. Disseram-lhe para falar com o senhor doutor, já que no Natal pensou em comprimidos e na vida que não tinha sentido. Porque, é assim, é uma mulher com muitos complexos, desde sempre. Porque aquilo que traz é só um soutien com almofadinha, sempre se sentiu diferente das outras meninas e, apesar do peito ter crescido quando deu à luz como a mãe lhe disse, voltou a diminuir e não se sente bem. Nunca tomou banho no mar, não quer tirar a t-shirt. E não deixa que lhe toquem. Nenhum homem. E eles fogem para outras e dizem-no na cara, para encontrar o que ela não lhes dá. E dói. E é isto, doutor. Precisa de ajuda.

Dezanove do Um do Onze

E a nostalgia aparentemente chegou. Julguei que demorasse algum tempo e quiçá, que nem sequer surgisse, mas a verdade é que entrar de novo no hospital e cruzar-me com outros estudantes que um dia já fui, fez-me desejar reconhecer alguma daquelas caras para lhes sorrir. Por enquanto, é apenas isto. Ainda não sinto a falta de aulas em bancos dolorosos, dos professores que não nos vêem nem dos exames injustos. Dizem-me que um dia sentirei essa falta. Um dia hei-de sorrir com nostalgia ao ver o imponente hospital onde passei tantas horas da minha juventude. Tenho algumas dúvidas. Mas gosto de surpresas.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Dezoito do Um do Onze

Acumula. Cada pequena frustração diária acumula e a motivação diminui proporcionalmente. Esgoto-me e não quero voltar a tentar. Fico. Acomodo-me. Como sempre. E por se manter o de sempre, a fé na mudança torna-se mais escassa. É preciso mover, é preciso tomar iniciativa. E digo-o, tanta vez e com palavras tão bem apresentadas, e falho no gesto. E repito-o, com palavras, para que seja consciente, mas a acção mantém-se. É preciso algo mais. As palavras também se esgotam.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Dezassete do Um do Onze

Não foi um episódio, nem sequer dois. Foi constante em qualquer consulta com os dois presentes, pais e filhos. Especificamente, mães e filhos adolescentes. A adolescência impõe a pose dominante, o desafio protegido pela defesa apertada e a relativa descontracção perante os problemas de saúde. A mãe é, obviamente, galinha e quer exames para os pintainhos, só para saber que está tudo bem. E a mãe galinha responde às questões que o médico coloca ao filho, e diz que ele nunca diz as coisas todas, que fuma e que não pára quieto e nem sabe como ainda não lhe deu qualquer coisinha. Ah, e come muitos doces! É então que vem, invariavelmente, o rebolar dos olhos que termina com o múrmurio "oh, mãe..." e o olhar discreto de quem pede desculpa pelo embaraço da ansiedade materna.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Doze do Um do Onze

Sempre receei perder o controlo da escrita. Gosto de me perder nela, de ficar horas de volta de um texto, de lhe mudar apenas uma palavra ao fim de meia hora, de escolher uma música para lhe servir de conforto e ouvi-la vezes e vezes sem conta até ficar satisfeita com o resultado final. E não sei mentir, escrevo o que sei, o que conheço, o que suponho. Preciso de vivê-lo para o escrever, mesmo que através de alguém que mo conte. Por vezes, outras realidades provocam-me a escrita. Desconheço os limites da escrita, não sei até onde posso afundar-me por um pedaço de texto. Não sei que palavras devo conter para deixar a escrita inócua. Porque quero comoção, mas não quero estranheza. Não quero ebriedade. Mesmo que seja o único refúgio onde permito a minha perdição.
Talvez me fique pelas pequenas coisas.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Nove do Um do Onze

Dias fechados. Os cumprimentos gripais obrigam a horas debaixo de um cobertor enorme. A testa aquece e os olhos descansam sobre o meu colo ainda são. Não me sei mover também quando fica assim. Adoeço também um pouco, à espera de um acordar melhor. Ajeito o cobertor, sinto-lhe a temperatura, trago o leite e as bolachas, deito-me a seu lado para aguardar um pouco mais perto os sinais de recuperação. Talvez a proximidade me traga também alguns sinais de doença. Não importa. Preciso de estar ali.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Quatro do Um do Onze

Hoje é só isto. Ela subiu as escadas a pé, com a sua barriga muito grávida e, ao chegar ao piso certo, da Ginecologia/Obstetrícia e Sala de Partos, pára antes de entrar, olha para cima e benze-se. Que corra tudo bem. Só então entra finalmente na ala que a levará, quem sabe, a um futuro diferente. E, hoje, basta isto.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Três do Um do Onze

Duas criancinhas abandonadas na ponta da mesa desenham sobre os papéis que lhes deram, a mesa do restaurante é sempre uma tentação. Desenham casas e pintam as letras brancas da publicidade à cerveja. Uma tem oito, outra tem seis e estão a conhecer-se.
A mesa ao lado não é indiferente à brincadeira. No final da refeição, dedicamo-nos, nós gente crescida, aos desenhos no papel da mesa. Relembramos os desenhos de antigamente, recriamos os bonecos da nova cortina de banho e desenhamos as casas que já não se encontram por aí, as dos telhados em triângulo e com uma chaminé com fumo branco. Quando terminamos a obra, rasga-se o papel, como há uns anos atrás, mas desta vez não é para levar para casa a grande obra prima. Mostramos às meninas que abrem os olhos muito espantadas, olham de volta para os pais e ficam de boca aberta com o gesto.
"Cá para mim não sabes o que está aí..." "Sei, sim! É um palhaço, um pato, um leão, uma girafa, uma casa e uma menina!" A mãe insiste para a mais nova dar algo em troca. Depois de algum amuo, aceita. Na sobra do papel, escreve o nome dos desenhos e o seu nome, Leonor, na letra bonita da primária. Estica de volta o papel, guardamos a sua retribuição. Ainda vamos a tempo de a ouvir dizer "Vou levar isto para casa!"

domingo, 2 de janeiro de 2011

Dois do Um do Onze

Esperei sessenta e nove horas para te ter ali comigo, de olhos pertos dos meus, trepando por cima do aro dos teus óculos, que insistem em magoar o meu nariz quando te procuro um beijo. Ali, a sós, entre as palavras que se contiveram durante essas sessenta e nove horas. Ali, onde ninguém vê o mimo que guardei para ti. Ali, finalmente, entre os compromissos, os sonhos e os elogios para o ano que começa. Ali, nas memórias dos dias bons e nas promessas dos dias melhores. Ali, contigo. Ali, connosco.
Agora sim, posso começar.

Dois Mil e Dez Dois Mil e Onze

É preciso um ritual de passagem para que consiga aprumar as ideias. Porque há algo muito cheio a terminar e um desafio tremendo à minha frente.
É preciso uma despedida à medida, com o elogio a cada vitória, demasiadas para serem sequer previstas no inicio deste ano que termina. É preciso honrar cada nova ligação e cada reconquista. É preciso ter noção de tudo isto e compreender o quanto temos em nós, o quanto é possível em apenas uma volta ao Sol. É preciso aceitar que somos capazes para que, agora, depois de arrumado o ano velho, se possa mudar a atenção e focar-nos, de peito cheio e sorriso subtil nos lábios, o ano que termina.
É incógnito e chama por nós. Tem trezentos e sessenta e cinco partes para nos surpreender e esta é a hora para nos prepararmos para tudo o que nos couber. Porque somos capazes, diz-nos o ano velho. E avançamos, com medo, mas com determinação, no ano novo. Porque é preciso. Vamos embora. É este o ano.